Nathan Schafer

Equipe Laranja

Nathan Schafer

Estudante de jornalismo que preenche o orçamento da família com bicos na construção civil. Aprendeu [sic] a desenhar com o avô, Mordechai Schafer, um comerciante judeu. Mordechai é especialista em piadas que ninguém entende, arte praticada pelo neto com afinco.

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Terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Uma revelação familiar judaica

Eram três da tarde e eu chegava encharcado de suor à casa de meu avô, implorando pelo ar-condicionado da sala de televisão. Entrei na sala e, passado o alívio inicial, o percebi assistindo televisão em pé, encostado na janela. Estava com o quipá azul, provavelmente havia acabado as orações não fazia muito. “Sexta-feira, hein?!”, cumprimentou na voz arrastada que muito se parece com a minha antes mesmo de me cumprimentar. “Esquece! Não vou fazer Sabbath”. “Bom, você é quem sabe, Nathan!”, disse enquanto sorria e coçava a barba com a ponta dos dedos compridos. Depois de um tempo, sentou calmamente na poltrona de couro, folheou o Correio do Povo sem ler porcaria alguma e ligou o aparelho de som paleolítico para escutar algo que não conheço. Também disse que queria me dar um livro do Philip Roth, porque “se você vai ler putaria, que seja bem escrita, e por alguém da diáspora”. Aceitei. Confio muito em seu gosto. Por conta dele conheci Woody Allen, Bob Dylan e Henry Sobel – o último pessoalmente, persona agradabilíssima, embora minhas gravatas não possam dizer o mesmo.

“Mas diga lá, do quê você precisa? Dinheiro?”, perguntou, tirando a carteira do bolso traseiro com a mesma expressão que, imagino eu, Maria tenha olhado para o filho na cruz.

“Não, Vô. Eu queria te contar uma coisa… mas, sabe como é…”

“Meu filho, pra quê dar voltas? Você sabe, somos amigos. Não precisa ter vergonha”, e ao mesmo tempo em que falava devolvia a carteira ao bolso. Seu rosto parecia uma manhã de natal. Para um cristão, é claro.

Tentei começar a falar. Não consegui. Esqueci as frases de efeito, as piadas de mãe judia que ele adora. Resolvi improvisar. Tomei fôlego e recomecei:

“Bom… É que eu tenho uma coisa pra contar, mas… é… é um pouco constrangedora, sabe?”

“Ah, Nathan. Não tenho preconceitos. Isso hoje em dia é tão normal.”

“O que é tão normal hoje em dia?”, reagi assustado. Será que ele já sabia?

“Ora, eu vejo que você não tem namoradas, toca contrabaixo… E olha o jeito que você se veste… Bem que eu falei pra Olinda.”

“Vô, não tem nada a ver com isso. Eu não sou gay!”

“Ok, se você quer desistir de me contar agora, tudo bem. Vamos fingir que a conversa nem aconteceu.”, disse em tom confortador. Não acreditei no que ouvia. O que era mais estranho? Meu vô achando que eu era gay ou, após “saber”, lidar bem com o fato? Continuei:

“É sério! Não sou gay. Vim aqui pra te contar outra coisa.”

“Se você não é gay, o que mais você tem pra me contar? Diga, porque agora eu não faço a menor ideia!”

“Bom, o que eu quero te contar é que não estou fazendo medicina pra me tornar psiquiatra, como meu pai diz pro senhor há três anos.”

Fechei os olhos esperando a cólera. Ela não veio. Aguardei por uns três segundos. Abri os olhos. Meu avô ainda estava diante de mim, na poltrona, sorrindo e arrumando os óculos no nariz pontudo.

“O que se pode fazer, não é? Na verdade, já esperava isso.”

“Esperava?”

“Achei muito estranho que você tivesse passado pra medicina em uma única tentativa.”

“Mas passei pra um curso concorrido! Estou quase me formando.”

“Ah é? Meus parabéns, então. Não sei por que esconder isso de mim…”

“Achamos que você não gostaria de saber.”

“Que grande bobagem! Mas diga lá, você estuda o quê? Engenharia?”

“Não.”

“Direito?”

“Não.”

“História?”

“Também não.”

“Pelas barbas do rei Salomão, meu filho. O que você estuda?”

“Jornalismo.”

Nunca vi um homem de 84 anos levantar-se de forma tão brusca. O rosto de meu avô tornou-se vermelho, então roxo e parou em algo entre azul e verde. Ele também desabotoou os três botões superiores da camisa; tirou os óculos; seus olhos perderam o foco. Ficou olhando para o quadro que uma de minhas tias pintou durante os anos 70. A cena mostra um senhor de expressão desolada, sentado no banco de uma praça, alimentando pombos enquanto é observado por um varredor de camisa listrada. A expressão do senhor na praça era a de meu avô naquele instante. Após alguns segundos , ele sentou. Com os olhos já orbitando, olhou fundo nos meus.

“Jornalismo? Mais ou menos, quanto ganha um jornalista?”, falou assim, sublinhando a maldita palavra.

“Em Santa Catarina uns R$ 1.500”.

Seria melhor que eu tivesse tatuado uma suástica na testa. Ao ouvir a quantia, encolheu-se de tal maneira que a poltrona pareceu engolir suas costas magras. Os olhos saíam de órbita mais uma vez, e eu sem meios de ajudar. Ir embora, também não podia. Fiquei esperando que melhorasse. A noite chegou e ele se encolheu ainda mais, sem emitir som algum. Minha preocupação, que já não era pequena, aumentou ao lembrar que pela manhã Olinda, minha avó, chegaria de viagem e não poderia encontrá-lo daquela maneira. Liguei para meu pai, avisando que prorrogaria minha visita ao Rio Grande do Sul.

Já se passaram duas semanas; minha avó voltou, foi e voltou de novo. E ele continua na poltrona.  Acostumei-me a banhá-lo com algodões umedecidos, alimentá-lo com purê de batatas e caldo de carne. Todo dia, bem cedinho, quando o motociclista atira o jornal no jardim, a respiração dele começa a ficar fraquinha, fraquinha, os olhos vão se fechando, o peito arfa. Parece que desiste da vida. Mas eu não desisto dele. Sento ao piano, toco Hava Nagila e as coisas já vão melhorando. Quando torna a respirar normalmente, começo a abaná-lo com notas de cem reais. Estou pensando em passar na casa de câmbio e trocar por libras esterlinas. Tenho aqui comigo que a cura será imediata.

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