Nathan Schafer

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Nathan Schafer

Estudante de jornalismo que preenche o orçamento da família com bicos na construção civil. Aprendeu [sic] a desenhar com o avô, Mordechai Schafer, um comerciante judeu. Mordechai é especialista em piadas que ninguém entende, arte praticada pelo neto com afinco.

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Domingo, 19 de maio de 2013

A lua vem de Brasília

Acordei pontualmente, às nove da manhã. Como de praxe, espreguicei-me. Percebi, então, meu atraso abissal. Estando ainda muito frio, deixei meu corpo físico na cama e tomei, em espírito, a direção do banheiro. Apenas espírito estava, de modo que não necessitaria escovar os dentes — o fiz por higiene ou hábito, ou ambos. Finda a escovação, tencionava retornar a meu corpo físico de cento e setenta centímetros e noventa e sete quilos, mas não pude. Meu corpo, desde férias no Pelô e por indicação de Pai Vitinho, estava fechado. Aliás, tal qual Zé Pequeno — Dadinho é o caralho! —, jamais poderia bater virilhas vestindo patuás. Não bastasse tudo isso, havia ainda outro dificultador: pela manhã, as linhas de reintegração carnal são mais raras que sinal da TIM. Sem nada para fazer, despido de esperanças, decidi interromper Homero, meu cachorro, que degustava suas próprias bolas. Chamei-o pelo nome. Ele não atendeu. Mais ainda: disse-me, alisando a barba engraxada, com forte sotaque bávaro:

— Meu nome é Sigmund. Schnauzer que sou, mereceria um nome germânico. Não este latino que me foi imposto. Sua burrice é gritante. Nota-se, se me permite um neologismo, sua mentecaptez. Quisera homenagear a um poeta, chamar-me-ia Goethe. Este sim, o maior dos maiores. Não gastaria um dodecassílabo inteiro para um simples amarrar de sandálias.

— Homero? Mas que porra é essa?!

— Nunca leste o Fausto? Valha-me nossa senhora!

— Sou um homem simples, um escriturário. — defendi-me.

— Um escriturário? Que faz um escriturário? Anda, diga-me!

— Não sei. Simplesmente não sei. — confessei, envergonhado. Por sorte, almas não possuem a propriedade de corar. Todos sabem que plasma não tem cor. Prossegui: — Gosto da palavra. Soa bem: escriturário. Escriturário, não acha? E, pra ser sincero, você sabe que vivemos de renda.

— Renda?

— Sim: renda. Da fábrica de lingeries que herdei de tio Carvalho. Lembra?

— Absolutamente.

— Absolutamente sim? Absolutamente não?

Após minha pergunta Homero — ou Sigmund — tornou a suas bolas. Não sem antes recomendar a mim que tivesse “maior afinco no vernáculo” e mandar-me a merda. Os fatos, não necessariamente na ordem em que estão narrados.

Empreendi nova tentativa de regresso ao corpo carnal: fracassei. Dirigi-me a biblioteca, onde vive nosso rabino de estimação. Salomão, o rabino, dormia. A boca miúda escancarada, como que a reproduzir O Grito, de Munch. Salomão, porém, é mais feio que o quadro. Nosso outro rabino, também muito feio, chamava-se Matusalém. Acaba de falecer após novecentos e sessenta e nove anos de fiéis serviços.

Sobre os joelhos ossudos de Salomão, pendia o tomo II de Das Kapital. Salomão acredita que ali encontrará a resposta para a divisão de uma criança entre duas mães: uma rica e outra pobre. A partilha, aos olhos de nosso rabino, resume-se a uma luta de classes. Mas, pequeno detalhe tem dificultado a vida de Salomão: o livro de Carlitos Marques é deveras chato e difícil de compreender. Entrar em Das Kapital é ser Teseu, sem Ariadne e novelos de lã e com Minotauro em companhia de Cigano, José Aldo e Anderson Silva. O problema tem aperreado Salomão, que não se posiciona acerca da questão da criança — e nem criança é, pois completa vinte e dois anos em junho.

A lentidão de nosso rabino é notável. Poderia ter poupado todo este tempo partindo a criança ao meio, dando um pedaço a cada mãe. Procedimento este, de fato sugerido por Homero — ou Sigmund.

Digno de registro, porém, é que a imagem de Salomão adormecido reacendeu a vontade de retornar a meu esbelto corpo. Após esforços hercúleos, encontrei certa conexão. Estava já em quarenta e cinco vírgula oitenta e dois por cento de minha transferência quando a conexão caiu. Não tendo ainda o torrent chegado ao além, um desastre abateu-se sobre mim: mais da metade de meu corpo espiritual foi perdido. Minhas características mais belas e nobres se foram; as vilanias cresceram, avultaram-se: multiplicaram-se feito preás no cio.

Ainda que incompletos, eu e meu corpo carnal éramos um só novamente. A primeira coisa que tratei de fazer, já senhor de minha carne, foi despedir Salomão. Aliás, a primeira não. Levantei-me antes. Salomão na rua da amargura, renomeei Homero — ou Sigmund. Dei-lhe um nome cristão: Eclesiastes. Nunca mais permiti que sentisse o gosto das próprias bolas e impedi-o de aparar os pelos da cabeça e têmporas. Proibi Eclesiastes, inclusive, de atitudes claramente indecorosas e pederásticas como, por exemplo, cheirar o toba de Tobias, o cachorro do vizinho. Eu, porém, permito a mim umas — poucas — cafungadas em tobas alheios.

Resolvidas as pendências mais urgentes, vesti um dos ternos de meu finado tio Carvalho — àquela altura, não possuía qualquer espécie de roupas. As rendas, apenas.

Assim que pude, vendi a fábrica de rendas. Fundei uma igreja; elegi-me deputado. Prosperei enfim.

Amém.

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